9 de outubro de 2009

Vai passar


Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, par uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando algo como "estou contente outra vez". Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloquentes como "sempre" ou "nunca". Ninguem sabe como, mais aos poucos fomos aprendendo sobre a contunuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicídio e nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidadmente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse é o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência. Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada, não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência". E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado, sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.
Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talves enumeres todas as vezes em que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se recostituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na lagartixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça. Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirá uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para casa de teus avós ou de teus pais ou tomar um trem para algum lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer ( e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.


Caio Fernado Abreu.

4 comentários soprados.:

. disse...

Dificil mesmo é passar, qndo se quer ficar. Belíssimo texto do Caio. Incrível a capacidade que os textos dele tem de nos absorver por completo, sentir-se inteira. Bom feriado pra ti! Beijo no coração!

Andrea Mari disse...

Caio Fernando Abreu sabe muito e eu sinto tudo quando ele escreve e descreve emocoes...muitooo bom ter relido! obrigadaaaaaaa e amei o selo!bjosssss

Lumenamena disse...

Muito interessante seu blog!

Damos capacidade de perceber e exprimir a emoção, assimilá-la ao pensamento, compreender e raciocinar com ela, em nós próprios e com outros.

Abraços,
Lumena

Christi... disse...

Nossa que profundo aqui, dorei !
a imagem divinamente compreendida

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